Por Francisco Mesquita de Oliveira. Sociólogo e Professor Associado na Universidade Federal do Piauí – UFPI.

O painel que reflete a realidade das pessoas que viveram uma situação de pobreza e sofrimento em Esperantina-PI, bem como suas lutas sociais, retrata também os desafios enfrentados pela população pobre nordestina e brasileira. Por séculos, essa parcela da sociedade conviveu com condições de extrema miséria e injustiças, e parteexpressiva ainda hoje convive. Entre 1980 e 2000, setores da Igreja Católica, incluindo a de Esperantina, por meio da teologia da libertação, apoiaram a formação das Comunidades Eclesiais de Base (CEBs) e estimularam movimentos populares a atuarem no enfrentamento de injustiças sociais e práticas exploratórias promovidas por empregadores e proprietários rurais.Essa trajetória, em Esperantina,está ilustrada no painel “Calvário de Cristo Hoje”, que reacendeuagora nova polemica na cidade.
Em 2016, o pároco da Igreja de Nossa Senhora da Boa Esperança, a época, iniciou uma campanha para reformas no edifício religioso. Durante esse processo, foi considerada a remoção do painel artístico criado em 1983 por um artista de Pedro II – PI, originalmente encomendado pelo Padre Ladislau João da Silva, com o apoio das comunidades e movimentos populares de Esperantina. O debate acerca da possível remoção do painel motivou significativa discussão no município, culminando no tombamento do imóvel “Igreja Matriz” e do próprio painel pelo Governo do Estado, conforme Decreto nº 17.114 de 20 de abril de 20217, integrando ambos ao Patrimônio Artístico e Paisagístico do Piauí.
Com o tombamento, oprédio da Igreja Matriz da Boa Esperança e o Painel “Calvário de Cristo Hoje” são patrimônios artísticos e paisagísticos do povo do Piauí, representando valores culturais, históricos, artísticos e religiosos. Juntos, compõem um importante conjunto artístico-cultural para a sociedade piauiense.Esconder o painel atrás de uma cortina, algo que durante a reforma da Igreja fazia sentido para protegê-lo, acaba privando qualquer cidadão – especialmente os piauienses e esperantinenses – do direito de conhecer, apreciar e interpretar a obra artística-religiosa presente no presbitério da Igreja.
Em sociedades desenvolvidas e instruídas, produções históricas, artísticas, culturais e religiosas como o Calvário de Cristo Hoje são geralmente valorizadas, reconhecidas e preservadas. Essas obras constituem uma parte relevante da história local sob a perspectiva artística, contribuindo para o fortalecimento do orgulho do povo local e para a preservação da memória histórica coletiva das futuras gerações. Mas, em Esperantina a arte religiosa gera polemica e contestação.
A cortina que cobre o Calvário de Cristo Hoje deveria ter sido retirada há tempos, mas permaneceu devido à orientação de uma igreja espiritualista em Esperantina, desenraizada da realidade do povo que sofre injustiças. No contexto atual, reconhecer, preservar, valorizar e defender esse patrimônio histórico, cultural, artístico, religiosonão é apenas um dever de preservação da cultura, mas também um compromisso ético com a memória e a identidade de um povo que, por meio de suas lutas e manifestações, buscou – e continua buscando – dignidade, cidadania e reconhecimento. Portanto, trazer novamente o Calvário de Cristo ao olhar das pessoas representa um gesto de respeito à trajetória de um passado da Igreja e um convite para que novas gerações compreendam, por meio da arte, os desafios pelos quais possou – e passa – o povo de Esperantina.
Algumas pessoas, nas redes sociais, expressam desconforto em relação às imagens do Calvário de Cristo Hoje no presbitério da Igreja, alegando que seriam associadas à violência e a agressividade e poderiam perturbar os momentos de orações. Contudo, obras como as pinturas da Capela Sistina, no Vaticanoem Roma, que apresentam corpos nus, corpos abraçados, glúteos expostos, pessoas caídas ao chão, desde o século XVI não têm interferido na prática religiosa de Papas, Cardeais, Bispos, freiras e fiéis que vão à capela para orações.
A decisão de manter ou retirar a cortina, tornando o painel acessível ao público, ultrapassa questões religiosas e evidencia debates políticos relacionados à ocultação da memória histórica coletiva. Ao abordar a exposição Calvário de Cristo Hoje, ressalta-se o compromisso com a transparência histórica, bem como a garantia do acesso universal aos bens artísticos, culturais e religiosos, promovendo também o incentivo à reflexão.
